Por que se diz “Trata-se de casos raros” mas ao mesmo tempo se pluraliza o verbo numa frase semelhante: “Tratam-se casos raros de câncer naquele hospital”? Qual a diferença? Na 1ª frase o verbo tratar é usado como transitivo indireto(portanto o sujeito é indeterminado), e na 2ª como transitivo direto, o que lhe permite ser apassivado (há um sujeito na voz passiva).
BCCCV esclarece:
Esses verbos que têm dupla transitividade podem ser encontrados em frases estruturalmente parecidas mas sintaticamente diferentes justamente por causa da preposição. Podemos verificar que, ao ser usado um complemento/substantivo no plural, a construção varia de singular para plural conforme a transitividade ou regência do verbo:
Precisa-se de vendedores ágeis. ["vendedores" é objeto indireto – voz ativa]
Precisam-se vendedores ágeis. ["vendedores" é sujeito da voz passiva]
Atendeu-se às reivindicações.
Atenderam-se as reivindicações.
Usa-se de artifícios para driblar a torcida.
Usam-se artifícios para driblar a torcida.
Sempre se utilizou de vacinas para tratar o gado.
Sempre se utilizaram vacinas para tratar o gado.
Sabe-se dessas coisas por meio dos jornais.
Sabem-se coisas do arco-da-velha.
Falou-se dos deputados em todo o país.
Falaram-se assuntos impublicáveis no Congresso.
Com este projeto visa-se aos interesses ecológicos da comunidade ilhoa.
Com este projeto visam-se os interesses ecológicos da comunidade ilhoa.
Para dar conta do desafio, parte-se dos seguintes princípios.
Para dar conta da alimentação de todos, partem-se os pães em pedaços.
VOZ PASSIVA COM AUXILIAR E INFINITIVO
Quando se utiliza uma locução verbal na voz passiva com um verbo (principal) transitivo direto, pode-se empregar o auxiliar [dever, poder, estar] tanto no singular quanto no plural:
Deve-se analisar os fatos.
Pode-se arrumar as camas agora.
Não se pode impor limites ao coração.
Está-se a dizer coisas de arrepiar...
Podem-se comprar carnes e frios à vontade na loja da esquina.
Acredito que se poderiam dar melhores condições aos produtores.
Acho que se devem estudar os processos minuciosamente.
É certo que todas essas frases podem ser desdobradas na voz passiva analítica. Por exemplo: Os fatos devem ser analisados, carnes e frios podem ser comprados, poderiam ser dadas condições... Esse desdobramento mostra que há um sujeito no plural com o qual deveria concordar o verbo. Contudo, também se pode entender que o sujeito é o infinitivo, como se fosse assim o enunciado: analisar os fatos se deve; impor limites ao coração não se pode... Isso explicaria a aceitabilidade da construção no singular, aliás muito mais usada, por soar melhor.
A maior parte dos livros de gramática foge dessa particularidade. Domingos Paschoal Cegalla, no entanto, ao tratar da concordância do verbo passivo, diz textualmente: “Nas locuções verbais formadas com os verbos auxiliares poder, dever e costumar, a língua permite usar o verbo auxiliar no plural ou no singular, indiferentemente” (Minigramática da Língua Portuguesa, Cia. Editora Nacional, 1996, p. 388 e Novíssima Gramática da Língua Portuguesa, idem, 1985, p. 388).
* Maria Tereza de Queiroz Piacentini