sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

CRASE: Casos diversos

--- É correto escrever: A contratada deve refazer os serviços as expensas da empresa? Qual é o certo: A contratada deve refazer os serviços às expensas suas ou às expensas próprias? Maria Luiza, Rio de Janeiro/RJ



No primeiro caso é incorreto escrever “as expensas” (sem acento de crase), pois a expressão comporta ou apenas a (simples preposição) ou às, à semelhança da locução “às custas de”:
 
A contratada deve refazer os serviços às expensas da empresa.
 
Ele vive a expensas da mulher.
 
Ao sair de casa, quando completou a maioridade, João começou a viver a suas expensas.

Oferecemos a hospedagem, mas as refeições correm às suas expensas
 
Também é possível falar às próprias expensas. E ainda se pode inverter a ordem das palavras nesta locução: “vive a expensas suas” ou “vive às expensas suas, às expensas próprias”.
 
 
--- Por que na frase: o prêmio foi entregue à quem menos merecia, usa-se crase e na frase: o prêmio foi dado a quem não merecia, não se usa? Jaciene Nascimento, Nilópolis/RJ
 
Em nenhuma das frases apresentadas é correto o uso da crase. A grafia certa é: 1. O prêmio foi entregue a quem menos merecia e 2. O prêmio foi dado a quem não merecia.  Diferente seria: O prêmio foi entregue àquele que menos merecia, em que a palavra sublinhada está por “a aquele = para aquele”.
 
 
--- Consulta sobre o emprego da crase. Estaria correta a frase “Boa noite à todos”? Por quê?  Gildete da Silva Cordovil, Rio de Janeiro/RJ
 
O correto é sem o acento – mesmo quando o pronome estiver no feminino:
 
BOA NOITE A TODOS
BOA NOITE A TODAS
 
Isso porque todo e toda, pronomes indefinidos, não são determinados pelo artigo. E como se sabe, a crase é o processo de junção da preposição A como o artigo definido A.
 
 
--- Por que dizemos "ir ali" ao invés de "ir àli" (a ali)? Gustavo Lacerda, Curitiba/PA
 
Escreve-se  “vou ali", sem acento, porque não existe a ocorrência de "a + ali". O verbo ir pode ser usado de várias maneiras (só no Dicionário de Regência, de Celso Luft, ele ocupa mais de uma página) e uma delas é como intransitivo: verbo ir + advérbio (locativo). Neste caso, não há a incidência da preposição A. Seguem alguns exemplos: "Queremos ir ali agora. Vou lá, sim. Vamos para lá. A listagem do material necessário vai em anexo, conforme solicitado. Vai abaixo a nominata. Ele sempre ia na frente”.
 
 
--- Relatório referente à compra solicitada... favor informar se existe crase após referente. E o porquê. Cida Parra, São Paulo/SP
 
Sim, o correto é escrever referente à compra solicitada.  A razão é que referente a  forma uma locução na qual o A é uma preposição (veja o masculino: referente ao prazo solicitado) e o substantivo compra está determinado pelo artigo definido A.

Maria Tereza de Queiroz Piacentini

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

CONCORDÂNCIA NOMINAL:

DE FESTAS E CERIMÔNIAS

--- Gostaria de saber se na frase "Cidade de Deus é indicado para 4 oscar", como saiu em alguns jornais da internet, está correto o emprego no singular da palavra oscar. Não seria Oscares (no plural), concordando com o numeral? Reginaldo da Silva França, Brasília/DF


A palavra Oscar tem sido usada no singular por se tratar de nome próprio – e em inglês – que adjetiva um nome comum, no caso o prêmio (“Oscar prize” no original). Ou seja, no plural falamos dos prêmios Oscar. Contudo, está ocorrendo com esse termo o mesmo que aconteceu com Havana, por exemplo, que ao designar os charutos [de Havana] se tornou substantivo comum: “Fumas um havana?” Então, é possível que em português se diga dois oscars (com a mesma pronúncia do inglês) ou dois óscares (forma usada em Portugal). 
 
Até mesmo na língua inglesa se usa o plural quando a palavra Oscar se refere a um dos prêmios individualmente, configurado em uma das estatuetas, situação em que não se faz acompanhar de um substantivo. Sempre será “the Oscar presentation, an Oscar statuette”, mas pode ser: “The annual presentation of the Oscars has become the Academy of Motion Picture Arts and Sciences’ most famous activity”, conforme site oficial da Academia. 
 
 
--- Qual o significado de patrono e paraninfo em uma cerimônia de colação de grau? G.R.O., Aracruz/ES 
 
--- É correto utilizar o tratamento patrona e paraninfa no feminino? K.V., Rio de Janeiro/RJ
 
Paraninfo é o padrinho de honra, é o homenageado maior da cerimônia de colação de grau. Se mulher, haverá uma PARANINFA. Patrono é o segundo homenageado, uma personalidade marcante para os formandos. O feminino de patrono, neste caso, é PATRONESSE. A mulher será então a patronesse da turma. Patrona existe, mas é o feminino de patrono nas suas demais acepções, quais sejam: advogado de defesa, protetor, fundador, padroeiro, figura tutelar de uma academia, arma ou força armada, enfim pessoa a quem se homenageia por serviços prestados.
 

--- Gostaria de saber se é verdade que a expressão de tratamento "senhorita" não está mais sendo usada, pois casarei em dezembro e começarei a entregar os convites de casamento em outubro, e preciso saber se a calígrafa deverá usar senhora ou senhorita para as moças solteiras. Aliás, gostaria de saber quando se deve usar senhora ou senhorita. Há limite de idade para a "senhorita"? Divorciadas são "senhoras"? Tem a ver com o fato da mulher ser casada ou não? Daniela Rosa
 
O vocativo senhorita é correto, sem dúvida, mas hoje em dia é realmente pouco usado em nosso país quando se trata de mulher solteira. É uma questão cultural. Lembro-me que quando estive no México toda mulher era chamada de “senhorita”, mesmo as casadas. Aqui no Brasil é mais uma questão de idade [senhorita é solteira jovem] e familiaridade [srta. é tratamento formal]. Sugiro-lhe dar uma olhada na coluna Não Tropece na Língua 118.
 
Mas creio que sua dúvida e necessidade se referem ao encaminhamento do convite (escrito à mão no envelope, numa letra cursiva bonita). Eis vários exemplos de como fazer isso:
 
-- a um casal, é praxe:
 
                                Sr. e Sra. Antônio Silva  
ou até mesmo:     Antônio Silva e Sra.     
 
-- para os solteiros e divorciados, basta escrever o nome: 

                                Melissa Silva
                                Guilherme Silva
 
-- para o casal e filhos:
 
                                Antônio Silva e família
 
-- para um casal bem amigo, dispensando-se a formalidade, pode ser apenas:
 
                                Antônio e Maria Cecília
 
A preposição “Para” antes ou acima do nome não é obrigatória em nenhum caso.

Maria Tereza de Queiroz Piacentini 

ESTRANGEIRISMOS, PURISMO E NORMA CULTA:

Como vimos e tem se propalado, o mau uso da língua afeta as inúmeras situações sociais, mas deve-se considerar que na verdade as situações sociais é que determinam os usos linguísticos. Os falantes se constituem como tal, usuários de uma determinada variedade linguística, nas interações verbais de que participam – já mostrava Bakhtin.  Se uma criança nasce num meio letrado, a gramática da língua que ela irá internalizar certamente será aquela que mais se aproxima dos padrões de prestígio social. 


Em nossa sociedade temos, de um lado, acumulação de poder material e simbólico; de outro, uma classe desmobilizada e sujeita aos instrumentos de imposição e dominação cultural, portanto linguística. Assim, “por maior que seja a parcela de funcionamento da língua infensa à variação, existe, tanto no plano da pronúncia como no do léxico e mesmo da gramática, todo um conjunto de diferenças significativamente associado a diferenças sociais”, observou Bourdieu (1996).
 
 
***
 
Como a língua não é um sistema pronto, acabado, mas está sempre sendo recriada, há forças permanentemente em movimento: forças internas agindo sobre ela (fatores gramaticais) e externas que nela atuam (os fatores sociais, como o contato com outras línguas, por exemplo), abrigando o surgimento de inovações a todo o momento. Essas inovações convivem por um tempo com as formas vigentes, enraizando-se depois e podendo elas próprias ser ultrapassadas com o correr dos anos. 
 
Purismo significa desconhecer tais mudanças e aceitar apenas uma língua pura, ornamental e escoimada de “erros”. Purista, portanto, é aquele que não se deixa impressionar “pelo caráter social de um discurso, não aceita as variantes combinatórias da norma objetiva, recusa dobrar-se à pressão estatística do uso”, diz Alain Rey (in Bagno. Norma lingüística, 2001). Parece, assim, que o purista ignora ou faz questão de ignorar todo o conhecimento científico da língua, recusando a realidade do uso. Um exemplo disso seria a insistência no ensino de certas formas anacrônicas, algumas jamais utilizadas no Brasil, como “anos oitentas, noventas” etc.
 
***
 
Uma das consequências de uma visão purista da língua são os ataques aos estrangeirismos que aterrizaram no Brasil, especialmente depois que a informática aqui se instalou com força, trazendo consigo não só a tecnologia americana mas a língua inglesa, intocada em termos como hardware, software, backup, zip, hacker, e-mail, link, e adaptada em outros como deletar, printar e atachar.
 
A crítica ecoa alarmista só porque as pessoas não se dão conta do fenômeno da variabilidade linguística. O uso de palavras provenientes de outras línguas é – repetindo – uma questão de aceitabilidade, de disposição às mudanças, na compreensão de que a variação está inscrita na língua, é inerente a ela. A mudança pode ser lenta, mas é inexorável.
 
E não podemos deixar de lembrar que a importação estrangeira é uma das fontes de formação lexical. A língua de aquisição é que varia, dependendo da época. Nos séculos 18 e 19, por exemplo, o francês era predominante. Agora é o inglês.  Quem é preconceituoso contra os empréstimos linguísticos imagina que atualmente eles são mais abundantes ou poderosos do que no passado, a sugerir a decadência da língua, o que não é verdade, conforme a ciência linguística constata.  
 
Essa noção de declínio, aliás, não é peculiar à língua portuguesa. Também em outros países a questão de uma norma aparentemente imutável e isenta de estrangeirismos está muito ligada à ideia de corrupção e empobrecimento linguístico. As pessoas veem a quebra das normas, ou o relaxamento de certos cânones linguísticos, como uma ameaça à integridade ou sobrevivência da língua. Não só os estrangeirismos mas toda contravenção linguística parece atentar, no imaginário dos brasileiros, contra a unidade e a força do nosso português. 
 
Por tudo isso vale ressaltar a importância da tolerância e da aceitação da pluralidade, sem preconceitos. Devemos nos abrir a novos horizontes, voltados, como bem sublinha a educadora Magda Soares, a “uma nova concepção de língua: uma concepção que vê a língua como enunciação, não apenas como comunicação, e que, portanto, inclui as relações da língua com aqueles que a utilizam, com o contexto em que é utilizada, com as condições sociais e históricas de sua utilização” (in Bagno. Lingüística da norma, 2002).

Maria Tereza de Queiroz Piacentini

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

NORMA CULTA e PRECONCEITO LINGUÍSTICO - V



A curiosidade de muitos brasileiros e dos nossos consulentes sobre questões de língua portuguesa é originada e fortalecida pela consciência ou mesmo pela intuição de que a falta de um cabedal linguístico pronto para uso nas diversas situações de interação social pode ser motivo de julgamentos desfavoráveis e depreciativos. 

Em sociedade estamos sendo avaliados e avaliando o outro o tempo todo. É para fugir do estigma que paira sobre quem não sabe “falar direito” ou “escreve errado” que vamos em busca de mais conhecimentos sobre a língua, ampliando nosso capital linguístico de modo a ficar a salvo do preconceito. O que é o preconceito linguístico, afinal? 

Do ponto de vista do discurso, o preconceito é uma discursividade que circula sem sustentação em condições reais. [...] O preconceito é de natureza histórico-social, e se rege por relações de poder, simbolizadas. Ele se realiza individualmente, mas não se constitui no indivíduo em si e sim nas relações sociais, pela maneira como se significam e são significadas. Não é um processo consciente, e o sujeito não tem acesso ao modo como os preconceitos se constituem nele (Eni Orlandi. Língua e conhecimento linguístico. SP: Cortez, 2002).

“O preconceito é, portanto, o resultado do modo como se exerce o poder e não uma casualidade ou uma característica intrínseca da pessoa”, complementa Luiz P. Britto (Contra o consenso, 2003). 

Sendo assim, não cessarão os preconceitos em relação à maneira como as pessoas se expressam verbalmente enquanto não houver a compreensão de que há variedades linguísticas – e elas existem em face de uma sociedade estratificada, com cidadãos desigualmente aquinhoados: “A unidade e a diversidade de uma língua vêm do modo como a sociedade se organiza e reparte seus saberes e valores, particularmente os bens materiais” (Britto 2003).

Bourdieu reafirmou a existência de um valor extrínseco imputado ao discurso de acordo com o locutor, com a legitimidade que lhe é conferida em razão do capital econômico-social e cultural que detém, o qual lhe permite enfrentar com mais tranquilidade as circunstâncias formais ou oficiais que exigem uma linguagem cultivada, mais polida e monitorada. 

O prestígio social do falante, como salientou Bourdieu, se transfere ao seu discurso, tanto assim que quando uma forma linguística nova se incorpora à atividade linguística dos falantes prestigiados, ela deixa de ser considerada como “erro” (Bagno. Preconceito lingüístico, 2003). O erro, pois, não é absoluto, mas sim relativo ao meio ou ao grupo social de referência. 

No Brasil isso resulta em que a maior parte da população tenha seu linguajar desclassificado e desqualificado sob qualquer hipótese. Com pouca escolarização formal e portanto pouco acesso à escrita, essas populações menos privilegiadas tendem, por óbvio, a conservar o uso das variedades ditas estigmatizadas. 

“A sociedade pós-moderna, da era da informação, concentra o poder, cada vez mais, em quem domina os níveis mais elevados do saber e subjuga os que pouco ou nada conseguem gerenciar por insuficiência no uso da leitura e da escrita”, diz Nilcéa Pelandré (Ensinar e aprender com Paulo Freire: 40 horas 40 anos depois. SP: Cortez, 2002). Cria-se um círculo vicioso. Ainda que o indivíduo se esforce para “subir na vida” estudando e buscando as formas de prestígio, ele pode sofrer o efeito dessa ótica que marca e segrega. 

Não admira, pois, que todos procurem conhecer e dominar a norma culta. Para o imenso contingente de alunos oriundos das camadas sociais desfavorecidas, esse conhecimento se prende à necessidade de que eles “possam dispor dos mesmos instrumentos de luta dos alunos provindos das camadas privilegiadas” (Bagno 2003). No caso dos demais, pela necessidade de alcançar ou manter um status social e profissional privilegiado que requer o uso da norma culta, essa que seria, no entendimento de Lucchesi (Norma lingüística e realidade social. In Bagno 2002), constituída pelos padrões de comportamento linguístico dos cidadãos brasileiros que têm formação escolar, atendimento médico-hospitalar e acesso a todos os espaços da cidadania.

Maria Tereza de Queiroz Piacentini